quinta-feira, 3 de setembro de 2015

A Legitimidade do AQUI/AGORA

uma reflexão sobre o fazer teatral e autonomia

por Don Correa

Don Correa é dramaturgo e diretor teatral formado pela Tshwane University de Pretória e Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná.


“Como saber se estamos no caminho certo?” pergunta o ator. “Nós sentimos”, responde o diretor.

"se o corpo não estiver em contato com aquele tempo e aquele espaço, diretamente e sem intermédios, não há a possibilidade de criação autônoma ou singularidade"

A sala de ensaio é certamente a melhor professora de qualquer ator ou diretor. É dentro desse espaço que a prática se revela a grande detentora da verdade. Daí a dúvida se aquilo que é feito no isolamento e solidão da sala de ensaios realmente representa algo de novo, ou ainda mais importante, algo verdadeiro e relevante: uma criação autônoma e singular. A dúvida abre a porta através da qual o seguinte intruso pode adentrar a sala de ensaio: o conceito desprovido das condições de tempo, espaço e subjetividade que estavam em jogo durante aquele ensaio naquele aqui/agora.

Não são raros os processos de criação teatral que perseguem algum pensamento pré-estabelecido. Todos serão julgados pelo seu resultado e/ou efeitos que exercem no aparato sensível do público presente. Sabemos pois que não são questões metódicas que julgam a efetividade de um evento estético, mas a sua apresentação ou performance. Portanto, não procuraremos nos deter em juízos de valor sobre os processos criativos que se preocupam com tais questões metódicas, e doravante nos contentaremos em descrever aqueles que têm a prática como fiel da balança contrapostos àqueles que não.

Pensemos no seguinte processo de montagem de um espetáculo teatral. No primeiro dia de ensaio o diretor diz: “coloque seus pés no lugar desejado, e certifique-se a todo momento que seus pés obedecem tal comando”. A instrução é seguida de diversas caminhadas durante as quais os atores praticam determinar um lugar específico para pousar a planta dos pés. Na sequência o diretor diz: “estabeleça um ritmo na sua respiração”, e o mesmo procedimento é repetido. Por fim, ele explica que “se os pés, sendo naquele momento o contato com a terra, e a respiração, naquele momento o contato com a vida, não estiverem sob controle, nada mais estará”. 

Sendo mais diretos, diríamos que se o corpo não estiver em contato com aquele tempo e aquele espaço, diretamente e sem intermédios, não há a possibilidade de criação autônoma ou singularidade.

Do segundo dia em diante, os atores trabalham com o texto e na elaboração de cada som e cada gesto. O mesmo procedimento é repetido em todos os ensaios, sem medo do erro e sem se esquivar de fazer escolhas necessárias para a elaboração do espetáculo. Certamente os atores estão sempre repletos de dúvidas quanto ao método que estaria sendo utilizado, por um lado tão óbvio e simples, por outro parecendo demasiado banal. A angústia do ator é a de dar um passo em falso, de cometer equívocos. Porém, quando isso se transforma em medo paralisante, a montagem é prejudicada, e trazemos nossos lugares de conforto ao nosso resgate. O medo está sempre presente, mas o medo que beneficia a montagem não é do erro, mas sim o que nos permite frequentar uma zona de risco onde estamos alheios a nós mesmos, permitindo a possibilidade do tão temido ´fracasso´. Fracasso perante as ideias, vitória da verdade construída através daquela situação na qual a intuição foi nossa mestra.

Os dias passam e desta forma cumpre-se todo o processo de montagem, sempre apoiado na intuição daqueles ali presentes, e os sistemas de encenação desenhados pelo diretor, sempre postos naquele aqui/agora e percebendo se exercem plena potência na sua sensibilidade.

Após os aplausos da estréia bem sucedida, os atores criam cada um à sua maneira uma fábula individual ou coletiva que dê conta da “falta de método” daquele diretor, mas exaltam a sabedoria do mesmo por ter sido tão atento a cada detalhe do espetáculo. Eles se recordam das perguntas que dirigiam ao diretor, por exemplo: “que emoção devo ter naquele momento?”, recebendo a resposta: “o que você elaborou através de sua sensibilidade é, e sempre será, legítimo.”

O processo criativo descrito é então aquele de aceitar a singularidade de cada artista presente naquela sala de ensaio, e a confiança de que o fruto de suas escolhas autônomas e intransferíveis terão recepção no aparato sensível de cada individuo que assistirá o espetáculo. É certamente uma hipótese, mas uma que privilegia a intuição e legitima seus juízos. Todavia, percebemos que nem tudo que é apresentado é da ordem do singular e autônomo, tornando o diretor um guardião da sala de ensaio contra todos os intrusos que ameaçam o trabalho dos atores, especialmente aqueles que eles mesmo trazem em seus corpos e mentes, que não são fruto daquela obra com aqueles artistas naquele aqui/agora. O intruso mais perigoso na sala de ensaios seria a busca de uma ideia pré-estabelecida, uma concepção a priori, do que o espetáculo deve “dizer” ou “fazer”, e que, portanto reduz o mesmo a uma série de discursos que utilizarão o fenômeno estético como seu veículo

Poderíamos supor um espetáculo que já fora montado em diversas ocasiões, e que já fora objeto de inúmeras críticas e ensaios. Neste caso devemos ter todo o cuidado para que nossas idéias pré-estabelecidas do que aquele espetáculo deveria ser já não determine o que ele será. Pois, se já sabemos o que um espetáculo será, qual seria a razão de fazê-lo? Não seria melhor deixarmos aquilo para a história da arte descrever? Por que repetir aquilo que já foi feito? Pareceria que há um certo conforto em ser legitimado por um suposto bem fazer, ou ainda mais por uma posição política. Talvez a recepção do público seria mais fácil, pois teriam que simplesmente ligar aquilo que percebem a um modelo já existente, aos discursos tão familiares. Mas seria isso de fato uma criação autônoma? Teria o público qualquer oportunidade de exercer sua própria autonomia perante esta obra?

Por mais que a hipótese de repetir um discurso encontraria fácil legitimação perante a crítica, o público, e principalmente os órgãos detentores do poder, este procedimento não parece convincente, pois submete qualquer evento aqui/agora elaborado pelos artistas aos diversos saberes ou discursos. O papel do artista seria então reduzido ao de simplesmente compreender o modelo pré-existente, elaborado por outrem, e pela sua mímese. Não haveria em tal procedimento lugar algum para singularidade, autonomia ou sequer criação. 

A única resposta parece ser a de expelir os discursos e saberes da sala de ensaio, e proceder tal qual nosso diretor nos instruiu: “colocando nossos pés no chão e exercendo controle da nossa respiração.” Dali em diante, a criação dar-se-á naquele tempo/espaço com aqueles sujeitos, tendo a intuição como guia, e os saberes e técnicas a seu serviço. Desta forma, não haverá nenhum risco de nosso espetáculo ser “didático”, “panfletário” ou de qualquer outra forma prostituído. É a oportunidade de rejeitarmos a imobilidade que questões metódicas ou saberes podem exercer na sala de ensaio, e deixarmos tais questões para antes ou depois, permitindo aquele aqui/agora ser legitimado por si mesmo.


“Não sou um teórico. Não sou um comentador confiável nem uma autoridade para falar da cena dramática, da cena social ou de qualquer cena. Escrevo peças, quando consigo, e isto é tudo. [...] O que eu escrevo não tem obrigação diante de nada, a não ser diante de si mesmo. Minha responsabilidade não é com o público, críticos, produtores, diretores, atores ou meus colegas em geral, senão para com a peça nas mãos, simplesmente." (HAROLD PINTER, 2009)


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

PINTER, HAROLD. The Cambridge Companion to Harold Pinter, 2nd Edition. Edição de Peter Raby. Tradução por Don Correa. CUP: Cambridge, 2009.