quarta-feira, 24 de abril de 2013

Antro+ Diálogos: Crítica de Ruy Filho a ZERO

Surgir ao fogo como sombra daquilo que lhe obriga existir


O fogo é, desde sempre, um signo inseguro. Se é que existam signos assim. Pois sua verdade depende do reconhecimento anterior à qualquer tentativa de revelação. Esteja ele na caverna para apresentar sombras ao filosofo, ou nas possibilidade de autossuficiência dos mortais frente à sua liberdade dos deuses. O fogo existe porque vive nele mais do que as chamas. É antes, calor. E antes ainda, imaterialidade e potência de autodestruição. Não épossível dizer por onde ou de onde surgiu sobre o homem. Apenas que a pele, em segundos, se alimenta do calor que paradoxalmente a consome. O corpo queima. Faz-se real. É antes dor e presença. Autocombustão. A qualidade de produzir ao ser a queima dele mesmo. Ou a penitência? Ao optar por trazer a poética que sustenta a narrativa do espetáculo pelos caminhos desenvolvidos juntos aos princípios do teatro transumano do Club Noir, a coerência se justifica na maneira como os argumentos estéticos se fortalecem com as escolhas. A luz que não desenha o homem, mas determina aquilo que nele não está visível, feito a sombra na caverna, quando o individuo conhece sua presença pela observação daquilo que não se coloca ao olhar. Se a verdade está antes ao fogo, então também ao combustível, o sujeito revelado por ela se encontra distante do instante da manifestação real. Sendo assim, não lhe cabe ser apenas o homem que projeta a sombra. É ele, primeiro o instrumento da matéria pela qual se dá a fuga de representação. O sujeito deixa de ser identidade e contorno, passa a ser pré-memória e preenchimento. O que o torna impossível de ser nomeado sujeito. Quem é ele? O homem, tal qual acreditamos assistir em Zero, não é o ator. Este é sombra. O homem encontrado ali somos nós, imagem verdadeira entre o fogo-teatro e a projeção-voz. Mas o fogo, em si, não está noutro lugar que não no corpo. É disso que trata o espetáculo. O corpo se queima. Faz-se, logo, ação. Portanto, resta compreender quem traz em si quem. O corpo carrega o fogo, feito a união simbólica entre consciência e existência, tal qual Prometheus, ou o contrario, mais pertinente à Fênix, em seu eterno processo de renascimento a partir das labaredas? Zero responde pela sucessão de imagens, cujas correlações se limitam aos extremos dos instantes, o momento em que a explosão pode ou não ocorrer. A violência que completa as relações dimensiona a autodestruição como inerência do individuo. O homem qual assistimos é mais pássaro. Basta-lhe ser e deixar que o fogo igualmente seja. Basta estar e exigir do fogo a desconfiguração de quaisquer confirmações de identidade. O fogo age pela necessidade em queimar, pois apenas dessa maneira será o que pretende ser. O corpo, por sua vez, o recebe pela importância em não permanecer estável, e gera um homem impossível de ser traduzido. A impossibilidade inerente ao humano em não ser a configuração exata de qualquer identidade ou desenho de sujeito. A imagem, o congelamento, é suficiente como cena. A solução de representação se faz pelo esgotamento do corpo que inexiste também no gesto, trazido pela palavra em forma de ativamento de novas combustões. Zero realiza bem o proposito do transumano. Consegue se destacar nas experiências mais próximas aos princípios da teoria, ao elencar imagens fortes, simbolicamente complexas, a partir de estruturas de representação simples e belas. O ator, evidentemente, não atinge o estado de autocombustão. Mas a experiência trazida ao espectador pode ser sim descrita como uma maneira de incendiar suas convicções por dentro. Atear fogo é pouco nos dias atuais. É preciso conseguir levar o outro a aceitar sua própria destruição. E Zero faz necessariamente bem muito de tudo isso.

(Ruy Filho)

http://antroexpostodialogos.blogspot.com.br/2013/03/zero-postscript-to-anarchist-cookbook.html

ZERO

texto e direção: don correa
elenco: brian townes
fotografia e vídeo: bruno mancuso
produção: FALA companhia de teatro

26, 27 de Abril às 21h00
28 de Abril às 20h00

Club Noir
Rua Augusta, 331, Consolação - SP

www.ciaclubnoir.blogspot.com

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