sábado, 16 de abril de 2016

A Primeira Leitura

Reflexões sobre práticas em sala de ensaio

por Don Correa

Don Correa é dramaturgo e diretor teatral formado pela Tshwane University de Pretória e Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná.



"leiam o texto de forma despretensiosa, por um lado clara e articulada, por outro deixando se afetar pelas suas falas"

É impossível saber qual o primeiro passo para a montagem de uma peça teatral. Se começa do anseio individual, ou do encontro entre artistas, não posso discorrer. Tampouco poderia falar se primeiro encontramos o texto para a peça, ou sequer se é necessário termos um texto para começar a montagem. Isto posto, gostaria sim de supor que escolhemos um texto e que gostaríamos de montá-lo, e as questões que podem surgir de tal proposição.

Um diretor lê um texto que gostaria de montar, visualiza alguns elementos básicos e toma sua primeira decisão concreta, a saber, a de convidar alguns atores para uma leitura. Estes primeiros passos já poderiam ser objeto de uma análise pormenorizada, mas deixemos  isso de lado e reflitamos sobre o encontro com os atores convidados, para percebermos como proceder.

Lembro de um diretor que me contou que certa vez teve uma leitura com atores renomados num hotel. Ele instruiu os atores da seguinte forma: "leiam o texto de forma despretensiosa, por um lado clara e articulada, por outro deixando se afetar pelas suas falas". Um dos atores perguntou: "você quer dizer então para entrarmos 'de sola' no texto?", e o diretor prontamente respondeu que não, que ele deveria ir com calma, procurando ter um contato com aquelas palavras. O ator ignorou a resposta do diretor e "entrou de sola", e a leitura foi depois descrita pelo diretor como "uma das piores que já ouviu na vida".

A primeira leitura é um momento delicado, durante o qual estamos tateando com o material, e não deveríamos colocar nossos traços imediatamente naquilo que foi escrito. É um momento de "impressão", e não de "expressão". As estruturas, os sons, as significações não foram ainda mapeadas, é um momento de explorações, de incursões, de sentinela. O mapeamento será feito depois, nos ensaios, e teremos todo cuidado durante esse momento. Mas o fato que as sensibilidades dos artistas estão tendo aquele primeiro contato com o material, em conjunto, faz disso um momento inaugural, por um lado saboreado, por outro sabendo que há muito trabalho a ser feito. "Entrar de sola" seria uma forma de querer agradar o outro, mostrar suas próprias habilidades, e não ter esse primeiro contato. Fazer tal coisa seria falar mais sobre você do que o texto, pois de onde viriam essas opções estéticas tão prontamente empregadas perante este texto? Não seria do seu próprio inventário de "boas práticas" ou "peças idealizadas"?

Uma peça idealizada nunca é concreta, e tende a ser um conjunto de vaidades e opiniões sobre o que o mundo deveria ser. Uma peça concreta precisa lidar com o texto em mãos, com os atores que habitam aquele tempo/espaço, com os nossos limites e possibilidades. Uma peça concreta é dirigida a um público concreto e jamais aquele que povoa nossas ideias ou fantasias.

Se o primeiro exemplo foi por um lado cômico, por outro mostra a vaidade que nos cerca, que é justamente o que nos impede de ter acesso ao outro, e de verdadeiramente fazer com o que o público seja ativo durante um espetáculo, e não um objeto. Um público ativo é aquele que por um lado deixa sua sensibilidade ser cortada pelo evento estético que presencia, por outro adentra tais cortes com seus próprios medos, anseios, desejos. Um artista que quer simplesmente se mostrar e ser adorado pelo público faria melhor se fizesse uma apresentação perante um espelho. Não importa se a adoração do público seja pela figura do ator, sua personalidade, ou por sua tremenda técnica, o ponto é o mesmo: é um teatro que coloca o público como um objeto, um ser passivo. Este teatro faz do público alguém para dirigirmos um discurso, e não um ser ativo, um sujeito. São posturas como essa que já nos dão uma noção da peça que surgirá daquela leitura. Pois se os artistas já têm tal postura perante a "exploração", imagine o que virá na hora da "elaboração"? São posturas éticas que têm profunda relação com o efeito estético que de lá brotará.

Por sorte de nosso diretor, os atores que fizeram o descrito acima não quiseram fazer a peça, e outra leitura foi feita, com outros atores. Na segunda leitura a mesma instrução seria dada: "leiam o texto de forma despretensiosa, por um lado clara e articulada, por outro deixando se afetar pelas suas falas". O segundo elenco, menos pretensioso, decidiu seguir a instrução do diretor. O texto foi mais do que dito, ele foi "fala", ou seja, um evento vivo, um acontecimento. Sim, por vezes haveria tropeços de leitura, de dicção, ou que quer que seja. Mas, a postura era outra, ela permitia que o ouvinte pudesse ter algum acesso ao que era dito, fazendo que o "dito" se tornasse "fala". Quando os atores não sentiam o que estavam dizendo, quando a "fala" era somente um "dizer", eles voltavam atrás e tentavam novamente. Não havia pretensão, vontade de agradar, poses, etc: o que havia era um elenco disponível, à procura de um evento estético.

Importante fazer notar que ter uma sensação no teatro não é um evento íntimo dos artistas. Só tratamos de eventos estéticos no teatro, e não de percepções internas. Se há relação entre uma e outra, não é esse o ponto, mas sim que nosso produto é um evento destinado a percepção do outro, e não do falante. O evento que importa é aquele posto no tempo/espaço, através de corpos, sensibilidades, sons, etc, e nunca as sensações privadas de cada artista.

A instrução do diretor era simples, mas a simplicidade nem sempre é fácil. Pois, para chegarmos a ter essa postura, ética antes de mais nada, de colocarmos o evento estético acima de nossos próprios egos, desejos, anseios, medos, e por fim permitir que o público tenha acesso aquilo que é posto no tempo/espaço, há muito trabalho a ser feito. E mais importante, quando falamos de trabalho, não falamos de esforço físico, nem de horas trabalhadas: trata-se, acima de tudo, de ter uma postura que possa garantir que tudo que tem ali sua origem, seja legítimo.  

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